Doces Portugueses com História

Arroz doce

Não são só os doces conventuais que fazem a glória doceira de Portugal. Os doces populares criaram raízes, evoluíram, e ficaram irremediavelmente associados a tradições. Não há festa ou romaria, ou casamento, sem um arroz doce.
A herança do arroz doce vem possivelmente dos mouros que habitaram o território antes da independência portuguesa a partir do século XII. Ingredientes simples e fáceis de identificar criaram uma variedade de receitas que permitem estabelecer uma rota do arroz doce. E comecemos pelo arroz que deve ser carolino. Depois vem o leite, o açúcar, a canela, os ovos, a casca de laranja ou limão e finalmente, infelizmente em desuso, a água de flor de laranjeira. A variedade do inventário das receitas de arroz doce, foi originado pela utilização de alguns daqueles ingredientes e pela proporção diferenciada na confecção.

O arroz sempre desempenhou um papel importante em festas e romarias. E particularmente em festas de casamento. Consta que terá sido difundido através da Pérsia, e as suas origens indicam a Índia e a Indonésia os países onde a variedade de qualidades é maior. Na Idade Média fazia-se farinha de arroz para a confecção de doces mais delicados. E o arroz-doce dá origem a uma das primeiras receitas conhecidas noutros países com a designação “à portuguesa”. No Oriente o arroz sempre simbolizou a fertilidade e, talvez por isso, o arroz é utilizado em chuva simbólica no final das cerimónias de casamento.

Apesar de o arroz doce não ser vulgarmente reconhecido como fazendo parte da doçaria conventual, encontramos algumas receitas em conventos. A particularidade é que utilizam sempre como mínimo de quantidade de açúcar a mesma quantidade de arroz, ou superior. Assim a receita do Convento de Arouca apresenta o detalhe de ser o único que não utiliza gemas, mas regista a utilização de água de flor de laranjeira. O arroz doce do Convento de Santa Clara de Guimarães, coze o arroz em água e depois junta-se o leite, as gemas de ovo e casca de limão. No Convento de S. Domingos de Elvas o arroz coze diretamente em leite, leva gemas e casca de limão. A receita do Convento da Senhora da Conceição de Lagos prevê a cozedura do arroz em água e depois adiciona o leite, as gemas e casca de limão. Nos Açores, no Convento de S. João de Ponta Delgada o arroz também coze em água e depois juntam-se as gemas e a particularidade de ser o único confeccionado com casca de laranja. Temos ainda notícias da confecção de arroz doce no Convento de Sant’ Ana de Coimbra não tendo sido encontrada a sua receita. Um detalhe importante do acabamento em todas as receitas é o polvilhar, ou enfeitar com canela em pó, atividade que revela verdadeiros artistas do desenho.

Depois do arroz doce de origem conventual poderemos fazer um roteiro do arroz doce popular que em muitos casos não se diminui em riqueza daquele. E se começarmos pelo Minho, e cerca de Viana do Castelo, encontramos um arroz doce macio, cozido em leite, e é melhorado com a utilização de açúcar em pó e algumas gemas de ovo. Também se faz ainda no Minho um arroz doce que coze primeiro em água e só depois se junta o leite, após evaporação da água, mas ao qual não se juntam gemas, ficando menos cremoso. Seguindo para Trás-os-Montes encontramos em toda a região a confecção de arroz doce conhecido um por mais simples por não ter gemas de ovo e mais quantidade de arroz do que de açúcar, e outro, de festas especiais, em Freixo de Espada à Cinta, confeccionado com leite, com bastante açúcar, gemas e por vezes aromatizado com água de flor de laranjeira.
Na Beira Alta encontramos vários arrozes doces que variam as proporções de arroz e açúcar, mas habitualmente confeccionados sem gemas. Há, no entanto, um arroz doce muito especial em Vila de Rua, freguesia de Moimenta da Beira, que é o Arroz Doce de Cesto. A particularidade é a colocação do arroz, depois de confeccionado e ligeiramente arrefecido, num cesto de verga previamente forrado com uma alva toalha de linho. O arroz não é lavado e tem uma pré-cozedura em água à qual se junta depois o leite.
Quando estiver cozido juntam-se as gemas que se misturaram com o açúcar. Este procedimento transmite uma textura diferente ao ‘creme. Claro que para finalizar se enfeita com desenhos feitos com canela em pó.
De Coimbra vem outro arroz doce associado a uma tradição que, lamentavelmente, está a desaparecer. A família da noiva participava o casamento às famílias amigas, oferecendo uma travessa de arroz doce coberta por toalha de tecido de Almalaguês, de produção artesanal. Uma semana depois a travessa era devolvida com o presente de casamento. Para a confecção do arroz, depois de bem lavado, este abre primeiro em água, e depois é colocado em leite fervente, ao qual se adiciona açúcar em maior quantidade do que a do arroz. Não leva gemas de ovo. O arroz doce era a forma do convite.
Descendo para a Estremadura, encontramos um arroz doce “saloio” cuja quantidade de açúcar é ligeiramente inferior à de arroz, mas sempre com gemas de ovos. Ainda nesta região encontramos o chamado arroz doce de casamentos que é um arroz mais rico pela grande quantidade de açúcar e de gemas de ovo.
Na região de Palmela é feito um arroz doce com leite de ovelha que lhe dá um sabor diferente mas inesquecível. Para terminar encontramos no Alentejo ainda outra forma de arroz doce que tem a particularidade de ser confeccionado sem gemas, mas adiciona-se um pouco de banha de porco que dá uma consistência muito cremosa ao doce.

 

 

Ovos-moles

A sua simplicidade é a sua riqueza. A sua delicadeza a transmissão do requinte. E o seu especial valor mede-se pela sua polivalência a completar outras composições doces.
Hoje em dia quando se fala de ovos-moles, fala-se de Aveiro. Quando se fala de ovos-moles cita-se o Mosteiro de Jesus de Aveiro e vem à memória toda a gloriosa doçaria que nasceu nos conventos.
Este mosteiro era tão importante na perspectiva gastronómica que era corrente famílias abastadas mandarem confeccionar as sua refeições na cozinha do mosteiro. Este abuso deu origem a críticas e ordenações régias e do Mestre da Ordem de S. Domingos, a proibir estas atividades. De recordar que em Aveiro houve conventos das ordens dominicana, franciscana e carmelita, todos femininos e de grande tradição doceira. E os ovos-moles são uma confecção que apenas utiliza dois produtos: açúcar e gemas de ovo, que após a extinção das ordens religiosas, 1834, começaram a ser confeccionados por várias casas seculares e são hoje um ícone regional mas também um doce identificador das especialidades portuguesas.
Cada convento teria as suas próprias receitas que, depois, se transformaram numa receita única. Naquele tempo as receitas eram transmitidas por via oral, e pela prática direta. A venda destes doces constituía uma parte importante das receitas financeiras dos conventos. Hoje em dia, a sua qualificação permite inscrever a menção oficial: “Ovos-moles de Aveiro – Indicação Geográfica Protegida”.
Este reconhecimento é a prova do aperfeiçoamento especializado nesta confecção e que permite afastar as receitas menos corretas.
Como se confecciona esta iguaria? Primeiro o trabalho delicado de obter as gemas, separando-as cuidadosamente das claras. Depois o açúcar que deve obter um ponto intermédio entre o ponto de estrada e o ponto de cabelo. Esta calda deve arrefecer para receber as gemas de ovo, e depois voltar ao lume para cozer a 110º. Aqui há um modo de fazer, os gestos, que chamam de segredos. A colher que mexe a calda não deve fazer movimentos circulares para não deixar a massa estriada mas movimentos de vaivém em direção a quem confecciona. Os movimentos são necessários para que se impeça de poder queimar a massa que se encontra mais próxima do calor. Depois segue-se o arrefecimento e repouso da massa, habitualmente por vinte e quatro horas, em locais especiais, estufas de temperaturas controladas.
Manda a tradição que se coloque, os ovos-moles, em barricas de madeira, tradicionalmente decoradas com pinturas de temas aveirenses. Também se usam potes em porcelana. A mais conhecida forma de aplicação de ovos-moles é em folhas de hóstia, moldadas em formas de motivos marinhos como conchas de bivalves ou outros. Os moldes são constituídos por duas metades que são recheadas com os ovos-moles e depois são unidas humedecendo as pontas. A hóstia para estes ovos-moles é confeccionada a partir de farinha, água e gordura vegetal, existindo fornecedores especializados e qualificados para o efeito. A qualificação destes fornecedores é fundamental para a garantia da designação oficial pois apenas a hóstia, as gemas de ovo e o açúcar são os ingredientes necessários. A sigla IGP apenas permite a sua utilização à zona geográfica constituída pelos concelhos de Aveiro, Ovar, Murtosa, Estarreja, Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga, Ílhavo, Águeda, Vagos e Mira.

Apesar de o seu consumo poder ser direto, ou em forminhas fechadas de hóstia, os ovos-moles entram em outras confecções doceira importantes. Sem ser uma lista exaustiva, os ovos-moles recheiam a Torta de Viana do Castelo e podem rechear algumas Trouxa-de-ovos. A nova cozinha também decidiu tirar partido da excecional qualidade e versatilidade dos ovos-moles e frequentemente entra como um componente de sobremesa, havendo mesmo já gelado de ovos-moles.

 

 

Pão-de-ló

 

Este bolo, bem português, é daqueles que merecem que se lhe escreva a rota pois encontramo-lo por todo o país, com mais incidência no norte. Será seguramente uma doce viagem, percorrendo Portugal à procura dos seus pães-de-ló. É tão específico em algumas localidades, que até ganharam a sua designação de origem, como também é um bolo partilhado em receitas de família pois, sempre que havia festa, a sua presença era obrigatória. A primeira receita que se assemelha aos Pão-de-ló atual consta no livro “Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte de Cozinha”, de Lucas Rigaud, 1780, a que chama de Pão-de-ló ou Bolo de Sabóia. Segundo Lucas Rigaud, juntam-se vinte gemas com, metade do peso dos vinte ovos, de açúcar e batem-se muito bem. Seguidamente juntam-se as vinte claras batidas em castelo e só depois se junta metade do peso, do açúcar, de farinha. Quando bate as gemas com o açúcar, junta-se também raspa da casca de um limão e flor de laranjeira de conserva. Sugere servir simples ou também com uma cobertura feita com açúcar fino, clara de ovo e sumo de limão. Ora esta cobertura vai dar-nos uma pista para outros bolos derivados do pão-de-ló, com veremos mais à frente. Importa, pois, reter que o Pão-de-ló é um bolo fofo confeccionado com ovos, e açúcar em dose mais generosa do que farinha. Depois encontramos três tipos genéricos deste bolo: seco, cremoso na zona central, e molhado ou servido com cobertura.
O que diferencia as variedades de pão-de-ló é a composição dos produtos da receita, a forma de os misturar, o tempo e gestos de batedura, e ainda a temperatura de cozimento. Por isso, Portugal, um país a descobrir pelos seus doces.
No Minho encontramos a maior variedade. O mais conhecido será o Pão-de-ló de Margaride, possivelmente o de maior expansão comercial, cozido em alguidar duplo de barro e revestido de papel. A mesma quantidade de gemas e claras e batidas em conjunto com o açúcar e depois adicionada a farinha em cerca de metade da quantidade do açúcar. Ainda hoje se produz pelos herdeiros de Leonor Rosa da Silva, que foi fornecedora da Casa Real. Margaride é uma vila do concelho de Felgueiras do qual há notícias desde o século X. Ainda no Minho temos um exemplo diferenciado que é o Pão-de-ló de Vizela que também é chamado de Bolinhol, cujo elemento mais evidente é a sua forma retangular e ter uma cobertura de calda de açúcar, que depois de arrefecer fica branca. Os ovos são batidos em conjunto com o açúcar e depois lentamente se junta a farinha peneirada.
Continuando no norte, temos o Pão-de-ló de Freitas, zona de Amarante, que na sua confecção utiliza dois tipos de farinha. Depois de bater as gemas com o açúcar, batem-se as claras em castelo e adicionam-se ao creme anterior. Depois junta-se delicadamente fécula de batata, farinha de arroz e fermento em pó, sendo que o peso é igual para o açúcar, a fécula de batata e a farinha de arroz. Coze em formas redondas barradas com manteiga.
Descendo até ao Douro, e atravessando para a margem esquerda, em Peso da Régua, deparamo-nos com um doce da família do pão-de-ló: as famosas Cavacas de Resende. Confeccionadas com grande quantidade de ovos que se batem, em maior quantidade de gemas do que claras, diretamente com o açúcar por cerca de uma hora. Junta-se depois a farinha peneirada que se mistura sem bater. Vai a cozer em formas, tabuleiros, retangulares polvilhados com farinha de milho. Depois de cozido corta-se em fatias a que se chama cavacas. Faz-se uma calda de açúcar onde se “molham” as cavacas e na parte superior, com ajuda de farinha de trigo, fica uma camada que arrefecida, embranquece. Conta-se que se deve esta receita ao contratempo de um casamento adiado e, estando já confeccionados tabuleiros com o bolo, decidiram ensopá-los em calda de açúcar para conservação e resultou neste prodigioso doce.
De grande fama e prestígio goza o Pão-de-ló de Ovar. Com referências na tradição popular desde o século XVIII, confecciona-se batendo os ovos, com maioria de gemas, e o açúcar até obter um creme leve e claro. Depois junta-se a farinha tendo o cuidado de a peneirar duas vezes. Vai a cozer em formas redondas e também barradas com papel, ficando cremoso na zona central. Passeando por Ovar, aproveite para ver os magníficos azulejos integrados nas edificações.
Temos ainda o Pão-de-ló de Arouca, também embalado às fatias e com cobertura de açúcar. Obrigatório é visitar o magnífico Mosteiro de Arouca, começado a edificar no século X e progressivamente ampliado e melhorado, e local de onde saíram tantos doces fantásticos.
Surpreendente é o Pão-de-ló de Alfeizerão, possivelmente uma receita acidental do século XIX. Consta que por erros de tempo de cozedura uma freira terá antecipado a saída do forno e ter ficado cremoso que faz as delícias dos seus apreciadores. Pode ser que a sua origem esteja no Convento de Cós, próximo da Alcobaça, Mosteiro que obrigatoriamente visitará e descubra a sua gloriosa história. Possivelmente muitos doces saíram do Convento de Cós para o famoso Mosteiro de Alcobaça.

 

 

Pastéis de nata

O Pastel de nata transformou-se num verdadeiro ícone nacional de pastelaria, atualmente confeccionado em todo o País, e até no Mundo.
As origens do pastel de nata Pastéis de nata são citadas no Convento de Santa Catarina de Sena, em Évora, e que são feitos com massa folha e um recheio apenas constituído por natas frescas, açúcar e gemas de ovo. Receita idêntica surge no Mosteiro de Arouca cujo espaço deverá visitar. Outra citação aparece associando os pastéis de nata ao Convento de Santa Clara de Évora.
Vários conventos femininos de Lisboa, até 1833, também confeccionavam pastéis de nata, e possivelmente por isso, toda Lisboa reclama a sua origem. Esta receita apresenta uma parte para a massa folhada, que leva açúcar e canela, e o modo de confecção parece estranho pois junta todos os ingredientes e não aplica a manteiga em fases de laminação da massa. Depois o creme feito com gemas de ovo, açúcar, natas, leite, um pouco de farinha de trigo, sal e pau de canela.
Em finais do século XIX, nos dois primeiros livros de cozinha e doçaria publicados no Brasil, encontramos receitas dos pastéis de nata o que revela, já nesse tempo, a importância destes doces.
Maria de Lourdes Modesto, no seu obrigatório livro “Cozinha Tradicional Portuguesa”, de 1982, apresenta os pastéis de nata no capítulo da Estremadura, e para o recheio: natas, gemas de ovo, açúcar, farinha, açúcar e casca de limão. Acrescenta: “Estes pastéis, que são talvez a mais importante especialidade portuguesa comercializada, podem ser servidos polvilhados com canela, e açúcar em pó.” E eu concordo completamente com esta afirmação.
Muito importante é o “Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas”, publicado em 1999, publicado com base num caderno de receitas detido pela última freira. A receita dos pastéis de nata apresenta um creme com natas, gemas de ovo, açúcar, água de flor de laranjeira e canela. No final refere: “…põe-se em forminhas”, “e nas forminhas vai ao forno”. Ora, este creme não tendo farinha, nem outros componentes que o façam adquirir uma forma sólida, sou de parecer que as “forminhas” poderão ser de massa folhada ou outra, a exemplo de outras receitas que encontrei em cadernos onde não são dados todos os detalhes da receita e os cadernos apenas fixavam quantidades dos ingredientes e algumas formas de executar. Aproveite e faça uma visita ao Mosteiro de Odivelas.

Poucos anos depois, 2001, em edição da Comissão Instaladora do Município de Odivelas, publica o livro “Doçaria Conventual” com base em receitas do espólio do Mosteiro de D. Dinis, das Bernardas do Convento de Odivelas que após  1834, terão começado a vender mais doçaria para o exterior a fim de angariar meios para subsistência do convento. Também aqui aparece uma receita de pastéis de nata. A massa não é folha e parece meia areada. O recheio é obtido com açúcar, natas, gemas de ovo, água e canela.
Mais uma referência sobre pastéis de nata, encontrei no livro “Sabores, Cheiros e Comeres Regionais de Mafra”, da autoria de Manuel J. Gandara. A propósito do convento existente no edifício também residência Real, escreve a propósito que “Sempre que a Comunidade de Mafra comia pastéis de nata consumia: natas – 300; ovos 61 dúzias; açúcar – 56 arráteis.” É importante a nota em que afirma que no convento dedicado a “Santo António, junto à vila de Mafra, parece ter sido dos raros mosteiros a segui-lhes o exemplo, contando com uma cozinha expressamente destinada à sua confecção, denominada Pastelaria.” E a estranheza é devido a ser um convento masculino pois a tradição doceira era reservada aos femininos. Portanto uma tradição de confeccionar pastéis de nata anterior a 1834, possivelmente por abastecerem a Casa Real durante as usas estadias. Um bom pretexto para visitar este belo monumento.
Arrisco, no entanto, a pensar que uns dos seus antepassados sejam os “Pastéis de leite”, receita número XXV do caderno de receitas da Infanta Dona Maria, muito embora a massa exterior dos pastéis ainda não seja folhada.
Eduardo Prado Coelho tem num texto encantador sobre esta maravilha portuguesa no livro “Nacional e Transmissível”. Curiosamente começa com a receita que não leva natas e leva miolo de pão e “canela dá uma sensação de conforto.” E sobre o prazer de o degustar: “Eu gosto que os pastéis fiquem bem dourados. Estaladiços, claro. A opção final é pôr canela e polvilhar com açúcar. Um pequeno requinte.” E continua, “o folhado estala entre os dedos, e sentes na sobreposição dos ingredientes a duplicidade infinita de matéria do mundo.” Mas ainda com o seu ar irónico escreve que “A literatura também se pode comer, e os poetas não se alimentam só de alpista.” Eduardo Prado Coelho, no seu estilo de prosa quase poética sintetiza o fundamental do pastel e os sentimentos ao degustá-lo. Grande elogio ao modo de ser português ou ter recebido as suas heranças.
Mas primeiro observamos o seu aspeto. O olhar é o primeiro sentimento. Depois os dedos tocam a massa exterior e sente-se o estaladiço da massa folhada. É o primeiro reflexo para o gosto. Depois uma ligeira trincadela para perceber, na boca, o recheio. E agora a dentada mais avançada para o creme… e depois apetece mais, mais e mais!

 

 

Pastéis de Santa Clara

A doçaria mais importante de Portugal deve-se, seguramente, aos conventos femininos que se espalharam por todo o país. Os mosteiros ou conventos de onde se conhecem mais doces foi, com certeza, os habitados pelas freiras da Ordem de Santa Clara, mais conhecidos pelas Clarissas. Seriam pois importante que um nome de doce também homenageasse a sua padroeira, ou santa de deu origem a essa Ordem. Santa Clara, 1193 – 1253, exemplo de virtudes e “filha espiritual de S. Francisco de Assis, o Papa Inocêncio III deu-lhe bula aceitando a ordem e com as regras semelhantes às de S. Francisco, mas para uma ordem feminina. O seu prestígio e exemplo de vida foram tão importantes que dois anos após a sua morte, 1255, o Papa Alexandre IV a canonizou.

Em Portugal instalaram-se vários conventos sob essa Ordem e houve tempos em que havia oitenta unidades, e que todas se celebrizaram pelos seus doces. Muitos das vários conventos e que dispunham de igrejas célebres foram da Ordem de Santa Clara como de Vila do Conde, Porto, Xabregas em Lisboa, Mosteiro de Jesus em Setúbal, Mosteiros das Chagas e da Esperança em Vila Viçosa e o Mosteiro da Conceição em Beja, apenas para citar alguns exemplos.
Seriam os famosos Pastéis de Santa Clara um ícone da Ordem? Não o podemos afirmar mas é natural que, com o povoamento de novos conventos com Clarissas que já viviam nos anteriores conventos, levassem algumas receitas para confeccionar no novo destino.
Muitas vezes essa receita não era escrita mas apenas transmitida por tradição oral. Possivelmente essa forma de tradição da receita veio trazer uma variação no receituário de cada convento. Convém esclarecer que a produção doceira nos conventos femininos não era destinada à satisfação gulosa das suas habitantes. Poderia acontecer mas, eram uma fonte de receita e vendida para o exterior ou era também uma forma de agradecer aos doadores dos conventos ou como uma espécie de contribuição para pregadores ou outros prestadores de serviços.
Em que consiste a base dos Pastéis de Santa Clara? Trata-se de um doce em forma de meia-lua, constituído por uma massa externa feita com farinha e um líquido ou gordura e depois recheado com um creme doce com gemas de ovo. O pastel pode ser frito ou cozer em forno e, no final, sempre polvilhado com açúcar em pó.
Em Vila do Conde, e oriundo do majestoso Mosteiro de Santa Clara, encontramos um local de maior produção destes pastéis.
A massa exterior é feita com farinha de trigo, açúcar, manteiga e um pouco de sal. Para o recheio é colocado açúcar em ponto de estrada e depois adiciona-se amêndoa ralada e gemas de ovo que, ao lume, se transforma num creme consistente e uniforme. Vai a fritar e depois é polvilhado com açúcar em pó.
De Vila Real, e do antigo Convento de Nossa Senhora do Amparo, as pastelarias locais herdaram a receitam que continua em ampla confecção. A massa exterior é confeccionada apenas com farinha de trigo fina e manteiga, e com um pouco de água para ganhar elasticidade.
O recheio é preparado com açúcar levado a ponto de cabelo, gemas de ovo, amêndoa ralada e um pouco de canela. Prontos os pastéis vão a forno lento cozinhar e antes de servir polvilham-se com açúcar em pó. Deste convento surgiram ainda outros doces que é fácil adquirir em Vila Real.
Em Coimbra, e do Convento de Santa Clara também surgem os seus pastéis. Neste caso a massa exterior é confeccionada e trabalhada manualmente, apenas com farinha, manteiga e água, e o seu recheio são os famosos ovos-moles. Os pastéis são pincelados com gema de ovo e vão cozer em forno para no final serem, também, polvilhados com açúcar em pó.
Mais a sul, em Portalegre, e do Convento de Santa Clara os seus pastéis são também confeccionados com uma massa exterior de farinha, manteiga e água, e o recheio é outra receita celestial: manjar celeste. Este é confeccionado com açúcar em ponto de fio ao qual se adiciona requeijão e gemas de ovos. Depois de preparados os pastéis, estes vão cozer em forno lento para depois serem também polvilhados com açúcar em pó.
Em Évora, Património da Humanidade, também teve um Convento de Santa Clara que foi, possivelmente, o que deu origem aos anteriores pastéis. Aqui a massa exterior é confecionada com farinha, açúcar e água. Para o recheio prepara-se açúcar em ponto de pérola ao qual se junta amêndoa ralada e gemas de ovo. Depois os pastéis vão fritar para posteriormente serem polvilhados com açúcar em pó.
Aparentemente todos iguais, pequenos detalhes levam a sugeri fazer uma rota dos Pastéis de Santa Clara e aproveitar a beleza do nosso património natural e construído.

 

 

Pastéis de Tentúgal

A riqueza da doçaria portuguesa é um capítulo especial da nossa gastronomia. E há guloseimas que parecem uma herança cultural dos povos que habitaram o território que hoje é Portugal. A surpreendente massa que envolve estes pastéis parece ter sido ensinada pelos mouros que aqui passaram, atendendo à semelhança de massa com que são feitos doces, ainda hoje, em todo o Magrebe e até à Turquia.
Tentúgal é uma vila, do concelho de Montemor-o-Velho, próximo de Coimbra, e teve carta de povoamento dada por D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. No início do século XVI, 1515, D. Manuel I concedeu-lhe foral. Mais tarde, em 1565, é fundado o Convento de Nossa Senhora da Natividade que seria habitado pela Ordem das Carmelitas de Portugal. As primeiras freiras vieram do Convento da Esperança de Beja, local já com tradição doceira reconhecida. Possivelmente teriam sido essas freiras que trouxeram as bases para a doçaria que aqui se desenvolveu e que deu origem aos famosos Pastéis de Tentúgal. Este convento esteve habitado até 1898 pois a legislação que extinguiu as ordens religiosas, datada de 1834, previa que os conventos femininos se mantivessem em funcionamento até que morresse a última freira, e proibida a entrada de novas noviças. Por isso os conventos femininos encerraram em datas mais variadas. A fabricação de doces passou a ser uma fonte de rendimentos para esses estabelecimentos, e após o seu encerramento as receitas saíram para o exterior e começaram a ser comercializadas por empresas laicas.
Muito embora muitos conventos tenham registadas as suas receitas, era prática queimarem esses documentos para não haver o risco de divulgação dos seus segredos. Muitas vezes a transmissão das receitas era efetuada por via oral, associada à prática de fazer.
Para a confecção dos Pastéis de Tentúgal tem que se preparar a massa exterior. Para isso basta farinha de trigo muito fina à qual se adiciona água. Esta massa é trabalhada à mão de forma que a farinha esteja toda absorvida, uma massa uniforme, e é deixada a repousar, e coberta. Chegou a hora da tarefa mais surpreendente e de fascínio para muitos. Num espaço grande, e livre, são colocados vários tecidos finos, brancos que atapetam todo o chão. Depois são levemente polvilhados com farinha de trigo muito fina.
Uma ou duas pasteleiras, calçadas apenas de meias especiais, colocam a bola de massa na zona central e, delicadamente, vão com as pontas dos dedos esticando a massa garantindo que nunca se rasga. Esta atividade exige tempo, paciência e muita delicadeza no toque com a massa. A massa vai esticando até que fica capaz de se ver através dela, sem orifícios ou sem altos que revelem irregularidade. Ainda hoje é possível assistir a esta tarefa, contactando as pastelarias para saber dos horários. Ora, esta forma de esticar e secar a massa ainda se mantém, nos países da Magrebe e até na Turquia onde assisti a este procedimento que, por tradição, apenas é executado por mulheres. A bola de massa, transformada numa folha delicadíssima, é cortada em pequenos quadrados que vão dar o invólucro dos nossos Pastéis de Tentúgal.
Entretanto foi preparado o recheio. Este é confeccionado como os ovos-moles. Esta preparação é muito delicada pois consiste em fazer cozer gemas de ovo em calda de açúcar. Para a sua confecção coloca-se açúcar ao lume com um pouco de água até atingir ponto de cabelo que é um ponto baixo ou a cento e seis graus de termómetro. Entretanto preparam-se gemas de ovos que não se mexem mas que, tradicionalmente, apenas se cortam com uma faca. Juntam-se à calda de açúcar e volta ao lume até obter uma massa cremosa e uniforme, que constituirá o recheio dos nossos pastéis.
Sobre um quadrado de massa bem fina, coloca-se um pouco de doce de ovo e embrulha-se, enrolando e dobrando a massa, e voltando as pontas para que fique bem fechado. Inicialmente o pastel ficava de forma arredondada, em meia-lua, mas mais recentemente foi-se ajustando parecendo um palito. Aliás no início eram conhecidos como os pastéis do convento, depois pastéis em palito e só em finais do século XIX, com a comercialização fora do convento, adquirem a designação de Pastéis de Tentúgal. Depois de prontos vão ao forno para tostar um pouco e polvilham-se com açúcar em pó.

A delicadeza da sua confecção leva a que sejam apenas produzidos artesanalmente. A sua origem encontra-se registada em textos da época elogiando já a sua excelente qualidade. Também José Saramago, no seu livro “Viagem a Portugal”, assim se refere: “… confessa-se aqui o pecado da gula, para ver se tornam a saber-lhe tão bem os divinos pastéis que comeu encostado à Torre dos sinos, fazendo da mão esquerda um guardanapo para não perder migalha.” Tudo tão bom que nada se pode perder.
E de visita a Tentúgal não deve deixar de visitar a igreja do Convento de Nossa Senhora da Natividade, local de nascimento destes gloriosos pastéis.

 

 

Pudins

O termo pudim surgiu possivelmente só no século XIX e, seguramente importado da terminologia inglesa. Mas os portugueses já faziam o que agora se apelida de “pudins”, que chamavam flans e poderemos afirmar que desde o século XVI.
Tratemos então os dois tipos de pudins mais importantes e que continuam a confeccionar-se em Portugal: os de leite, e os de ovos. Estes últimos são verdadeiramente mais de gemas e nunca de ovos inteiros. Também existem ainda outros pudins como os de pão, de mel, e de frutas mas que são integrados naquelas duas grandes categorias.
Podemos acreditar que os primeiros pudins tenham sido dos de leite. Aliás, os elementos que os compõem deram também origem aos variados cremes de leite, muitas vezes polvilhados com açúcar e depois queimados. Quase todos os pudins utilizam na sua confecção tanto o leite como os ovos. A sua proporção, ou categoria com maior quantidade ditará a sua designação.
Atendendo ao receituário escrito, temos uma referência de um “Pudim Dourado” do Mosteiro de Santa Clara de Caminha que é verdadeiramente um pudim muito semelhante aos pudins que encontramos em restaurantes como “pudim da casa”, também próximo dos pudins flãs mas cuja receita utiliza manteiga para barrar a forma, em vez de caramelo. Ora o pudim de leite mais delicado que conhecemos é o que atualmente é apresentado como “Pudim Marfim”, possivelmente oriundo do Convento de Santa Clara, de Évora.
Este pudim surge após estudos, destinados a elaborar uma lista de doçaria do século XVIII, para fixar num restaurante de luxo instalado nas antigas cozinhas do Palácio Nacional de Queluz, e que ainda mantém a receita, e o pudim faz parte da oferta permanente. E a receita terá sido transmitida por uma familiar da doceira, que iniciou os trabalhos de pastelaria na abertura daquele restaurante, que terá tido contatos diretos com o convento. De facto, este Pudim Marfim, tem uma elaboração muito delicada e são necessárias várias horas de muita atenção. Começa-se por colocar ao lume dois litros de leite com meio quilo de açúcar e uma vagem de baunilha. Quando o leite reduzir para metade, deixa-se arrefecer e retira-se a vagem baunilha.
A frio, e mexendo lentamente, juntam-se catorze gemas de ovo. Barra-se uma forma de bolo inglês com manteiga e enche-se com o creme. Vai ao forno a cozer em lume brando e em banho-maria, e cobre-se com papel.
Deixa-se arrefecer e só depois se desenforma.
Polvilha-se com açúcar que se queima com ferro em brasa. É tradição enfeitar também com fios de ovos. Este é, portanto, o pudim de leite mais famoso e delicado.

Vejamos agora os pudins de ovos, quer dizer gemas. Isto quer dizer que o peso das gemas de ovo constitui o ingrediente principal para além dos ovos.
Conforme se pode ver em muitas receitas a variação tem muito que ver com a proporção das quantidades dos elementos utilizados na sua confecção. Encontramos com facilidade vários pudins, com mais ou menos açúcar e também variando a quantidade de gemas de ovos.
Estes pudins adquirem várias designações como pudins de ovos, pudins franceses, e outros. O pudim mais famoso nesta categoria é o extraordinário Pudim Abade de Priscos. Priscos é uma freguesia do concelho de Braga onde o Padre Manuel Joaquim Machado Rebelo, 1834 – 1830, foi nomeado Abade e onde se manteve por mais de quarenta anos. Notabilizou-me por ser um gastrónomo e organizou vários banquetes importantes, inclusivamente para os reis D. Luis e D. Carlos. A receita deste pudim foi das poucas encontradas, desconhecendo-se o paradeiro do seu famoso caderno. Esta receita foi fornecida para a escola do Magistério Primário feminino, a pedido do seu diretor, para ensinar tradições locais. Esta escola funcionava no antigo Convento dos Congregados, em Braga. Esta receita é possivelmente a mais delicada e importante receita após a extinção das ordens religiosas, em Portugal, coincidentemente o mesmo ano do nascimento deste Abade, 1834.
O pudim adquiriu tanta fama e notoriedade que o brasão e a bandeira da freguesia de Priscos têm representado um pudim. Digamos mais, este é, hoje em dia, um pudim confeccionado em todo o país, transformando num ícone da doçaria portuguesa. O que transforma este pudim numa iguaria tão especial? Vejamos receita. Coloca-se água ao lume, e logo que ferva junta-se açúcar pilé, uma casca de limão, um pau de canela e um pedaço de presunto gordo de Chaves ou de Melgaço, conforme refere o original. Entretanto, à parte, preparam-se as gemas de ovos que se misturam com um cálice de vinho do Porto. Logo que o açúcar esteja em meio ponto, retira-se do lume e coa-se por rede muito fina, garantindo que não entra a casca do limão, o pau de canela ou a presunto. É agora tempo de se lhe juntar as gemas de ovo. Prepara-se uma forma de pudim que é rigorosamente barrada com caramelo, e depois deita-se ao preparado de açúcar com as gemas. Tapa-se a forma e leva-se a cozer, em banho-maria, a forno bem quente.
Desenforma-se depois de arrefecer. Parece simples. A criatividade de incluir o presunto dá uma textura invulgar ao creme. Juntando o vinho do Porto elimina-se a possibilidade de sentir o sabor do presunto. Apetece dizer: genial.

 

 

Toucinho-do-céu

É fascinante como uma receita dá origem a outras iguarias semelhantes, mas que tão bem se distinguem umas das outras, e criam verdadeiros ícones de doçaria regional. O toucinho-do-céu é basicamente um bolo confeccionado a partir de um ponto de açúcar e depois é adicionado de amêndoas e gemas de ovo para depois acabar a cozedura em forma de ir ao forno. A sua variedade é impressionante podendo conhecer Portugal através da rota dos seus toucinhos-do-céu.
Só pela designação, este doce, sugere alguma curiosidade. Mas vejamos como variam as receitas em território nacional. E comecemos por Guimarães.
Em toda a região a receita está associada ao Convento de Santa Clara sem que, no entanto, se encontre algum registo escrito da sua receita. Esta surge escrita no século XIX em cadernos de receitas que supostamente as herdaram depois da extinção das ordens religiosas, 1834.
Mesmo assim surgem em Guimarães pequenos detalhes em várias receitas encontradas. De comum têm todo um começo com açúcar em ponto de pérola ao qual se junta amêndoa pelada e ralada, doce de chila e gemas de ovo, juntos nesta sequência para depois ser colocada a massa em forma redonda, e cozer em forno brando. Há receitas que incluem também pedacinhos de cidrão cristalizado. Depois de pronto é polvilhado com bastante açúcar pilé, colocado habitualmente em caixa de cartão, e enfeitado com papel recortado em toda a volta e pequenas flores, também em papel recortado, sobre o bolo.
Em Murça, no Convento de S. Bento, foi encontrada a receita que ainda é, hoje em dia, uma prática quotidiana a sua confecção. Começa da mesma forma o açúcar, desta vez em ponto de espadana, ao qual se junta a mesma quantidade de amêndoa ralada e de doce de chila. Polvilha-se com canela e juntam-se as gemas de ovos.
A grande diferença é que vai cozer ao forno mas em tabuleiro retangular. Depois de pronto, polvilha-se com açúcar pilé, e pode cortar-se em fatias regulares que ainda se colocam em caixas forradas com papel de seda recortado.
Relativamente próximo, do Convento de S. Gonçalo de Amarante, temos um outro toucinho-do-céu. Neste caso coloca-se o açúcar em ponto de espadana, junta-se a amêndoa, sumo de limão e as gemas de ovo, e algumas claras. Vai a cozer em forma redonda e enfeita-se a gosto. Idêntica receita foi encontrada no Mosteiro do Vairão em Vila do Conde.
O Alentejo é pródigo em doçaria e também no toucinho-do-céu encontramos variantes. Começando por Portalegre, uma receita do Convento de S. Bernardo, temos uma confecção com ponto de açúcar de espadana, depois juntam-se as amêndoas torradas e raladas, gemas e poucas claras e alguma farinha. Também de Portalegre, e do Convento de Santa Clara, há outra receita com açúcar em ponto de espadana, amêndoa ralada, manteiga de vaca e muitas gemas. Esta massa fica mais cremosa pela utilização da gordura da manteiga.
Mas em Elvas, do Convento de S. Domingos, temos um toucinho-do-céu que também é conhecido por toucinho rançoso.
Depois de açúcar se encontrar em ponto de pasta, junta-se doce de chila em maior quantidade do que de amêndoa. Claro que depois ainda são juntas gemas.
A sua consistência é diferente do anterior pela utilização do doce de chila. Continuando em Elvas, e menos conhecido é o toucinho-do-céu também conhecido por de Soror Mariana, do Convento de Santa Clara, que em vez de amêndoa são utilizadas nozes.
Em Évora encontramos a receita possivelmente mais divulgada nesta região. A sua origem é o Convento das Mônicas e tem um cuidado especial com as gemas que são passadas por um passador impedindo que surja algum pedaço de clara.
Depois de o açúcar atingir o ponto de pérola juntam-se as amêndoas previamente torradas e depois raladas. Juntam-se depois as gemas e vão cozer ao forno em forma redonda barrada com manteiga.
Quando chegamos ao Algarve também encontramos delicados toucinhos-do-céu. Se de Lagos, e do Convento de Nossa Senhora da Conceição nos aparece uma receita que utiliza amêndoas, pinhões e avelãs, a sua confecção está um pouco em desuso. Mas, em contrapartida, a receita mais comum encontra-se em toda a região e poderá ter tido origem em algum convento algarvio.
Depois de açúcar atingir o ponto de pérola, junta-se a amêndoa ralada. Depois junta-se manteiga, gemas de ovo e um pouco de pão ralado para ir cozer ao forno. Depois de desenformado pincela-se com uma clara de ovo batida com açúcar e polvilha-se com açúcar pilé grosso. Esta aparência quererá imitar o toucinho polvilhado com sal grosso.

Há ainda mais variedades de toucinho-do-céu que poderão ser encontradas. Podemos afirmar que há o toucinho-do-céu em formas retangulares e formas redondas, e toucinho-do-céu que também contém doce de chila. Mas todos de deixar saudades, e voltar!

 

 

Tortas

As tortas são habitualmente doces sob a forma de bolo que, confeccionado simples, é enrolada. Então tortas serão o que também se chama bolo enrolado. Mas antigamente também se dava o nome de torta a bolos compostos por camadas diferentes, sobrepostas e cozida em forma alta, e assim apresentadas.
Lamentavelmente esse tipo de tortas tem vinda a rarear a sua apresentação. Possivelmente a torta mais famosa na versão de bolo enrolado, é a de Viana do Castelo. A receita terá aparecido depois da fundação do Convento de Santa Ana de Viana do Castelo, em 1505. As primeiras freiras eram Clarissas oriundas do Mosteiro de Vila do Conde e que já eram renomadas artistas doceiras.
Para a confecção desta receita misturam-se gemas de ovos com açúcar e um pouco de farinha. Depois juntam-se as claras, das gemas, batidas em castelo.
Deita-se a massa sobre um tabuleiro barrado com manteiga e forrado com papel vegetal também untado com manteiga, para ir cozer em forno.
Depois de cozida, desenforma-se sobre um pano polvilhado com açúcar e barra-se com ovos mole e depois, com a ajuda do pano enrola-se mantendo-se embrulhado por uns instantes. Depois surgiram outras formas de recheio e é habitual encontrar a Torta de Viana do Castelo recheada também com geleias de frutas ou compotas. Esta torta era tão importante que inicialmente também se chamava Torta Real.

Outra categoria de tortas encontra-se na Torta de Segredos, oriunda do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Aveiro, e que possivelmente deu origem às tortas de laranja. Esta torta é confecionada a partir de uma massa de gemas de ovo com açúcar e sumo de laranja. Esta massa vai cozer ao forno de depois de cozer, é coberta com as claras, das gemas, batidas em castelo com açúcar. Quando as pontas ficam douradas, enrola-se tendo o cuidado de não deixar quebrar. Mas a Torta de Laranja, como hoje é mais conhecida, deve ter sido oriunda do Convento de Nossa Senhora da Conceição de Lagos.
A torta é confecionada misturando sumo de laranja com ovos e açúcar. Vai cozer ao forno em forma barrada com manteiga e depois é enrolada polvilhando com açúcar. Esta também é muito conhecida por Torta de Laranja de Setúbal. É certo que em Setúbal esteve instalado um convento de Clarissas no Convento de Jesus onde está agora um museu. Curiosamente desse convento não recebemos nenhuma receita de torta mas outra receita de uma Gemas do Convento de Jesus que rema confeccionadas com ovos, açúcar e sumo de laranja. Pode ser que esta região tenha adotado a receita pelo prestígio que as suas laranjas alcançaram.

Apesar de a designação ser “tortas” encontramos em Guimarães as suas tortas que mais parecem pastéis. A sua forma assemelha-se mais a este tipo de doce, mas como a designação local continua a ser de “tortas”, aqui são mencionadas. Guimarães é um local de grande tradição doceira onde existiu também um Convento de Santa Clara.
A atual versão das tortas é encontrada em cadernos de receitas após a extinção das ordens religiosas, 1834, mas em documentos conventuais é frequente encontrar notícias das tortas sem que a sua receita seja apresentada. Primeira prepara-se uma massa de farinha com água e depois faz-se um rolo. Nesta forma é oleada com pingue de porco. Depois é estendida até que fique muito fina.
É agora novamente oleada com pingue de porco, e fica enrolada, é untada com pingue de porco e fica de repouso durante a noite. No dia seguinte, o rolo de massa é cortado em discos e que se alargam manualmente. Sobre esta massa coloca-se o famoso recheio confeccionado a partir de um ponto de açúcar, ponto de espadana baixo, ao qual se juntam amêndoas pisadas, gemas de ovo, pau de canela e cidrão cortado em pedacinhos.
Coloca-se este recheio sobre a massa e embrulha-se, fechando bem as pontas, em forma de meia-lua, e a parecer um pastel. Vão agora estes “pastéis” ser mergulhados por pouco tempo, numa calda de açúcar em ponto de espadana.
Depois polvilham-se com açúcar em pó. Eis um doce tão especial e que adquire o nome de Torta de Guimarães.
Apesar de não ter sido criado em ambientes conventuais, mas terá nascido de cuidados de requinte caseiro, as famosas Tortas de Azeitão, no concelho de Setúbal.
Estas são da categoria das Tortas de Viana, mas são feitas em tamanho pequeno que se pode considerar como um doce individual. Para a sua confecção batem-se gemas com açúcar, e adiciona-se um pouco de farinha de trigo. Depois juntam-se as claras batidas em castelo.
Coloca-se esta massa num tabuleiro que vai cozer ao forno, de forma que fique a massa clara e amarela.
Corta-se a massa em pedaços cinco por oito centímetros, barram-se com doce de ovos, ou ovos-moles, e enrolam-se. São uma presença constante em todas as pastelarias locais e muitas vezes acompanhadas por um bom Moscatel de Setúbal.
Mais um exemplo de percorrendo Portugal, descobrir uma rota com base num tipo de doce tão característico. Hoje em dia é fácil encontrar outras tortas e em especial confeccionadas com tangerina, nozes ou amêndoas.

 

 

Trouxas-de-ovos

Esta preciosa doçaria tem origem conventual, e encontramos em vários locais por todo o país com ligeiras variantes. Sempre doces, muito doces. O seu aspeto provoca imediatamente um desejo, pelo seu amarelo vivo que nos revela o produto fundamental com que é confeccionado. Muito embora seja um doce confeccionado em todo o território nacional vamos ver as receitas encontradas, e as suas ligeiras variações. As trouxas-de-ovos fazem parte da doçaria requintada, conventual e rica.
Da receita do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde vejamos como é uma receita base e em relação às outras apontaremos as diferenças. Para a receita necessitamos apenas de açúcar e ovos. Começa-se por colocar o açúcar com um pouco de água ao lume até obter um ponto de espadana muito leve. Separam-se as gemas de ovo das claras e juntam apenas uma ou duas claras que mexem bem para se ligarem. Colocam-se as gemas no açúcar e com a ajuda de uma escumadeira afasta-se o creme para constituir uma folha. Depois volta-se a folha de gemas e com a escumadeira, com o cuidado de não rasgar, coloca-se em local para escorrer. Repete-se a operação até terminar o creme de gemas. Terminada esta operação colocam-se as folhas de gemas em mesa de trabalho e, com ajuda de uma faca, cortam-se as folhas em quadrados. As pontas das folhas de gemas aproveitam-se e colocam-se sobre os quadrados que se enrolam ficando em forma de rolinho regular e com as aparas a rechear. Colocam-se em travessa e regam-se com a calda de açúcar em ponto de espadana.
Continuando a nossa viagem doce, e na rota das trouxas-de-ovos, encontramos uma receita do Convento de S. Bento da Ave Maria do Porto. A ligeira variação tem a ver com a calda de açúcar que esta receita é em ponto de fio e apenas leva gemas de ovo na confecção. A operação de composição final é igual à da receita anterior.
Perto do Porto, em Amarante, e seguramente com origem no Convento de S. Gonçalo, encontramos uma tradição de confecção de trouxas e é de arregalar os olhos os tabuleiros, das pastelarias, cheios desta preciosa iguaria.
Depois em Aveiro, com origem no Convento de Nossa Senhora do Carmo, encontramos uma receita ligeiramente diferente. Começa-se com um ponto de açúcar em espadana alta, utilizam-se apenas gemas de ovos e o recheio das trouxas é constituído, também, por fios de ovos que são ligeiramente engrossados com farinha de trigo fina e amêndoa ralada. Uma preciosidade.
Há nas Caldas da Rainha uma grande tradição de confecção e consumo de trouxas-de-ovos. Apesar de, com rigor, não se identificar a origem da receita, esta poderá ser originária do Convento de Mós, com méritos reconhecidos na atividade doceira. De lembrar que as primeira habitantes deste convento eram oriunda de conventos alentejanos dos quais já se conhecia o seu prestígio na área dos doces. Estas trouxas são feitas a partir de um ponto de fio, com gemas misturadas com poucas claras, e as folhas ficam muito finas. Depois usam-se duas folhas para enrolar e formar as trouxas que se recheiam com as aparas das folhas de gemas.
Viajando agora até ao Alentejo que, possivelmente, terá sido a região onde nasceram as trouxas-de-ovos. E em Vila Viçosa, do Convento da Esperança, encontramos uma receita requintada, feita a partir de um ponto de açúcar de cabelo e apenas utiliza gemas de ovo.
O processo de compor as trouxas é semelhante, mas neste caso preparam-se, também fios de ovos para o recheio. No final colocam-se em travessa e são regadas com a calda de açúcar onde se fizeram as folhas e os fios de ovos.
Vamos agora até Beja, e experimentar as trouxas-de-ovos, oriundas do Convento de Nossa Senhora da Conceição. Este convento é conhecido como um grande centro de formação e de difusão da rica doçaria conventual. As suas trouxas são confeccionadas a partir de um ponto de pasta, apenas gemas de ovo e passadas por uma peneira, e fazem-se em simultâneo a folhas de gemas e fios de ovos. Ao enrolar estas trouxas, depois de colocados os fios de ovos sobre as folhas de gemas, enrolam-se de modo a que adquiram uma forma de um cone, uma ponta mais larga que a outra.
Antigamente colocavam-se em pé com a ponta mais larga em baixo. Eram feitas composições com as trouxas encostadas umas às outras, e depois regavam-se também com a calda de açúcar. Hoje em dia, vendem-se em caixas colocadas de forma alternada de modo que encaixem bem, E depois, naturalmente, regadas. Sobre estas trouxas escreveu Castro e Brito: “As trouxas de ovos, executadas em Beja, foram sempre consideradas as melhores, em relação às que de qualquer outra procedência.”
Se acha muito doces, não é por isso que deve deixar de provar as trouxas. Aproveite a partilhar com alguém e complete a refeição com fruta. Este é um doce inesquecível que obriga, pelo menos, à sua prova.